Frequentemente me pergunto: será que devo continuar a produzir qualquer coisa que não seja obrigação num momento em que tudo que produzo reflete e amplifica vazio e tristezas?
Sei que preciso estar presente nas redes sociais, porque isso impacta diretamente na quantidade de trabalhos que fecho, o que impacta no dinheiro pra pagar as contas. Mas aí vem esses momentos em que: nada. Não consigo expressar nada. Não me sinto um ser social.
Será que perdi a habilidade da linguagem ou que é simplesmente normal passar por isso? Quer dizer, eu sei o que eu tenho. Clinicamente a gente chama de depressão bipolar, mas na prática é uma maldita pedra no meu sapato. Ou eu não sinto nada, nem digo nada - ou sou tomada por desalento e raiva, e é só isso que expresso.
Quem é que vai querer ler ou observar alguém que é sempre tão… triste?
Bom, eu vou. Me dei conta disso quando me peguei esperando toda semana por um novo episódio de Mr. Corman.
Se você nunca ouviu falar sobre, eu te conto: Mr. Corman é uma série recente da Apple TV+. Nela, a gente acompanha o personagem Josh (Joseph Gordon-Levitt), um artista que deixa a carreira na música para trabalhar como professor do fundamental. Ao fazer essa escolha - pagar as contas, em vez de investir na própria arte - ele perde também sua companheira (Juno Temple). Josh é um homem ansioso e cheio de neuroses, que nós vivemos junto com ele ao longo dos episódios, sentindo uma identificação prazerosa e também dolorosa, afinal, a vida com esses transtornos já não é fácil, e tudo ainda começa a dar errado. Mas a gente também descobre a raiz desses traumas e desses sentimentos e comportamentos.
Não parece se encaminhar pra um final feliz. Não tem shipp romântico nem plot twist (ou tem!?). Nos comentários do TV Time não é raro o pessoal reclamar que a série é lenta. Mas não é pra ser rápida mesmo. A gente fica menos numa história linear e mais suspenso na alma do personagem que, às vezes, é um chato. Conhecemos sua rede de apoio. Às vezes é uma viagem doida, às vezes é um retrato certeiro do desespero.
Por que eu continuo assistindo Mr. Corman se é sempre tão triste?
Porque fala comigo em tantos aspectos!
Porque mostra como me sinto.
Porque explora vulnerabilidades e solidões que outras histórias não exploram, pelo menos não assim.
Porque às vezes na vida você se vê num trecho do percurso em que não enxerga mais o ponto de partida - ali é só você e a dor mesmo, sem mapa nem previsão de destino. E você segue.
Sinto que a minha relação com as séries, os livros e filmes é assim. Com qualquer coisa, na verdade. Ver pessoas que se permitem demonstrar emoções e experiências “negativas” - tristeza, ansiedade, rancor, ciúme, solidão, inveja, saudade, ódio - sem uma grande missão ou revelação, sem uma solução fácil e mágica (e obviamente impossível), me faz sentir menos sozinha num mundo de gente perfeita. Não que essas sensações não possam nos revelar nada, elas podem e vão, são o meio e não o fim. Mas superá-las é um processo, geralmente demorado, e falar do resultado como se tivesse sido muito simples chega a ofender.
Bom, tá na cara o porquê de eu ser tão emo desde pequenininha.
É claro que a gente não quer ver tristeza o tempo todo. Ninguém quer viver isso, francamente. Só pra ficar no mesmo streaming, a gente quer o otimismo e a sensibilidade de um Ted Lasso também. Mas até ele, descobrimos, tem dentro de si um combustível muito parecido com o nosso. Tem dor, tem trauma, tem relações frágeis e ódio.
Aliás, Ted Lasso se tornou uma das minhas séries favoritas exatamente porque é a comédia que vai te fazer chorar ao som de Rick Astley quando você menos esperar. E você vai gostar, e vai rir e se divertir enquanto conhece pessoas problemáticas, experiências negativas, reflexos da masculinidade tóxica, histórias dolorosas. Porque o trauma e a vulnerabilidade são naturais. O que muda é a maneira como a gente encara cada um deles. O peso que a gente dá pra esse tipo de situação.
Como tantas vezes esperamos (de nós mesmos e dos outros) que se mostre apenas as virtudes, as alegrias, a gratidão? Como consideramos ofensivo qualquer um que desvie dessa trilha e adoramos* a etiqueta “energia ruim” para essas pessoas e comportamentos? Em vez de ajudarmos a encontrar a raiz da dor ou entender a maneira como aqueles ao nosso redor se expressam, nós os taxamos de difíceis, colocamos sobre eles a responsabilidade pelo que sentem e os relegamos ao esquecimento.
Bom, nesse caso, nós é que não merecemos mesmo essas pessoas.
Então sim, vou botar pra fora aquilo que sinto. Às vezes vai ser alegre, enérgico, positivo. Ou neutro? E às vezes vai ser vazio e tristeza. Não importa. Se eu sinto que preciso falar, provavelmente tem alguém precisando ver. Talvez seja eu mesma, quem sabe?
Fica o recado pra você se expressar também. E vamos consumir de tudo. Não dá pra deixar que apenas uma emoção nos defina ou nos alcance. Não é nem humanamente possível.
Não é uma questão de passivamente consumir algo que valide nossos defeitos, mas ser capaz de enxergá-los não só da nossa perspectiva de quem sofre - mas de fora, percebendo que existe muito mais ao redor quando deixamos de acreditar que somos o centro e tudo é a nossa dor. Quando a gente se vê nessas narrativas, a gente encontra uma ferramenta também pra desligar a chavinha da autopiedade de quem guarda tudo no peito, e compreender o que temos de pior pra finalmente trabalhar essas questões. Isso também ajuda a amargura a diminuir, acredite.
Tá tudo bem não ter o que dizer. E tá tudo bem dizer aquilo que você sente, mesmo que não seja o que os outros esperam. O que te fizer bem no fim do dia. :)
(Sim, eu sei também que não é saudável viver me sentindo mal o tempo todo, e estou tratando isso - mas não preciso ter que me justificar toda vez que criar algo, como às vezes parece que preciso. E, mais importante, não deixo de ser quem sou apenas por não estar bem. Faz parte de mim e preciso parar de negar isso.)
*eu odeio de todo meu coração, mas você entendeu.
Apesar do tema central dessa cartinha, nem só de tristezas vive uma Maltine, e pra equilibrar as energias, tenho indicações de séries levinhas pra salvar um dia carregado!
A primeira é Call Me Kat, disponível no HBO Max. Estrelada por Mayim Bialik (de Blossom e The Big Bang Theory), a série conta a história de Kat, uma mulher à beira dos seus 40's lidando com o eterno balanço entre o que as pessoas esperam dela e o que realmente importa para si. Seu pai morre e ela resolve abrir um Cat Café (sim!!! Um café com gatinhos!!! SIM!!!), para desespero da mãe que sonha com seu casamento. Com números musicais, quebra da quarta parede, humor autodepreciativo e piadas nonsense, cada episódio é divertido e reflexivo. Comecei sem expectativas e terminei o primeiro rindo alto! Daí devorei o restante num dia só e agora estou triste esperando mais temporadas, porque sou dessas. Ah! O produtor da série é o Jim Parsons, ele mesmo, meu crush eterno. O trailer da temporada está aqui:
A segunda indicação é Schmigadoon! Assisti esse final de semana e está no Apple TV+. O casal de médicos Melissa (Cecily Strong) e Josh (Keegan-Michael Key) está em crise e decide fazer um mochilão para reacender a chama do relacionamento. Nessa viagem, eles se perdem em meio à floresta e vão parar em uma cidade mágica, onde ficam presos até “encontrar o amor verdadeiro”. A busca por esse amor é cheia de números musicais inspirados nos clássicos da Broadway dos anos 40 e muitos clichês e críticas embalando a autodescoberta dos dois. Divertida, rápida e provavelmente o pesadelo de quem não gosta de musical, né? Mas eu curti muito! hahaha.
Por último, mas não menos importante: Dollface, disponível no Star+! Estrelada por Kat Dennings (minha crush desde novinha), a série conta a história de Jules, que toma um pé na bunda do namorado de anos e se vê sozinha. Ela viveu tanto tempo fechada dentro da bolha do relacionamento que precisa correr atrás de se redescobrir enquanto mulher solteira e reconstruir a relação que tinha com as melhores amigas. É uma série debochada, divertida (e um pouco psicodélica) sobre o valor das amizades entre mulheres. A produtora executiva é a Margot Robbie, que também faz uma pontinha!
Sim, eu poderia continuar indicando séries bobinhas e leves por horas. Eu realmente escapo da realidade desse jeitinho. É sobre isso e tá tudo bem.
(Vou guardar as outras indicações pras próximas news!)
(Hoje eu te ofereço: tirinha triste. Amanhã, quem sabe?)
O discurso de Michaela Coel ao ganhar o Emmy de melhor roteirista por I May Destroy You me tocou bastante. Na verdade, todo mundo, né? O início da última semana foi marcado pela reprodução dele em stories, reels, tuítes, enfim. Mas vou colocá-lo aqui também, porque sim. Ela merece. Se você estava num universo paralelo ou chegou aqui do futuro e não se lembra mais, aqui está:
I May Destroy You é uma série extremamente potente exatamente porque é vulnerável. Merecia mesmo todos os prêmios. E ver Michaela se dirigindo aos escritores, convidando todos a abrirem mão do medo e exporem, sim, as feridas, foi tão importante. Especialmente porque ela finaliza com uma frase que já tatuei no meu coração: “visibilidade hoje em dia parece de alguma forma equivaler a sucesso. Não tenha medo de desaparecer. Disso. De nós. Por um tempo. E veja o que vem para você no silêncio.”
Em tempos de conexão 24 horas por dia, em que a gente sente a falsa necessidade de falar o tempo todo para que possa ser ouvido dentre todo mundo, alguém tão brilhante lembrar que há, sim, valor no silêncio é tranquilizador.
E isso me tocou porque estou cada vez mais buscando maneiras de respeitar esse silêncio. Acredito profundamente que ele é muito mais valioso do que o que criamos sem propósito, apenas para preencher as demandas algorítmicas. Isso é uma questão constante por aqui. Aliás, se reclamar que já não sei mais o que compartilhar parece repetitivo, ao menos não me sinto mais tão sozinha nessa luta. Jarid Arraes escreveu, em sua coluna na Elle: “Até que ponto aguentamos fazer a curadoria da nossa vida, trabalhar para que nosso conteúdo sério seja visto por quem se interessaria por ele, acompanhar os números de seguidores subindo – ou descendo – e não entrar num verdadeiro "burn out" de redes sociais?”
Tá todo mundo cansado, aparentemente. Vale muito ler o texto inteiro, porque ele mostra que o caminho é muito mais longo e vai muito além da preocupação com números. Ironicamente, comecei essa cartinha contando que sinto obrigação de publicar porque a internet é meu ganha-pão. Mas tenho cedido cada vez menos a essa pressão. É por isso que essa newsletter atrasa. Que meu podcast não tem dia certo. Tudo que crio sai com todo amor do mundo quando consigo. Mas sinto que preciso ter o que dizer primeiro. Processar minhas emoções, viver um pouco. Não viver para compartilhar. Viver e, então, compartilhar o que achar pertinente. Talvez isso diminua minha chance de "prosperar" - ou, no mínimo, reduza a velocidade desse progresso. Mas é quem eu sou e como sou capaz de criar. Pra mim, isso é propósito. Espero que entendam.
Um beijão e até breve,
Ariane Freitas